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sábado, 28 de maio de 2022

PARA QUE SERVE ESTUDAR LÍNGUA PORTUGUESA? LEITURA E ESCRITA COMO PRÁTICA SOCIAL

 PAULO MONTEIRO DOS SANTOS


INTRODUÇÃO


A finalidade específica do estudo da língua portuguesa, e esta resposta é genérica, tem por utilidade a melhor forma de comunicação no âmbito da esfera pública e sem esta não dá para haver uma boa comunicação. O ensino da língua não deve objetivar escritores profissionais, já que nem todos querem seguir essa profissão e muito menos têm, os alunos, o dever de ser bons escritores, mas de outra forma, eles devem ter o dever de escrever bem para assim se comunicarem. Foi para auxiliar as inquietações dos alunos e não inflamar mais o ego de alguns estudantes e profissionais das Letras, que buscamos escrever este artigo, ou seja, a Língua Portuguesa precisa de um fundamento para o estudante e não ser ela quem queira fundamentar a si mesmo goela abaixo no aluno. Outro ponto: a língua portuguesa não serve só ao ENEM, porque nem só de ENEM vive o estudante, mas de toda redação que sai de seu pensamento na fundamentação daquilo que ele quer comunicar de forma sistemática como prática comunicativa socialmente.  

É de nossa perspectiva que o melhor modo de começar a ler é lendo e de escrever é escrevendo. Tanto a leitura quanto a escrita é como a aprendizagem da fala: Ninguém fala sistematicamente correto, assim não precisamos ser bons leitores nem bons escritores, mas precisamos, e necessitamos, em algum momento de nossa vida, ler e escrever. Por isso, o primeiro passo consiste em não tratar a escrita e a leitura como um ofício tão somente de intelectuais, mas necessariamente na assimilação e exercício de nosso conhecimento, por isso escrita e leitura não pode ser consideradas como algo dado, como dom ou dádiva, mas algo trabalhado com paciência e dedicação do educador frente ao educando.

Como visão geral, ao longo da história é importante notar que a escrita não era algo simplesmente gratuito como o é hoje. Esta era negligenciada, regalada apenas a uma pequena classe privilegiada da sociedade. Muitas poucas pessoas sabiam ler e escrever antes e no início do século vinte. A chamada democratização da escrita se dá a partir do século vinte, principalmente na América do Sul. E mesmo hoje, ainda sofremos uma cultura que acredita ser a escrita privilégio das classes mais abastadas.

Nosso ponto, aqui neste trabalho, é mostrar qual é de fato a essência da escrita, tarefa que não se pode responder de forma simples, já que a escrita tem por essência não dar respostas simples, mas consiste em ter por substância o exercício, a prática, como respostas a seu ofício. De forma geral, podemos dizer que a escrita é o modo que dá sentido entre uma ponte comunicativa  do sujeito que escreve e o outro que lê. Uma forma de interação verbal num diálogo interativo, onde se há uma busca na construção desses mesmo sentidos textuais.

Falaremos nos próximos tópicos, em geral, como nestes processos de leitura e de escrita nasce a interação entre sujeitos: escritor e leitor, na prática social, esta que é a verdadeira função prática da escrita. Nosso trabalho se baseia na obra de Kock e Elias (2014), Ler e escrever: estratégias de produção textual, e tem por objetivo auxiliar a dar sentido à prática da escrita na vida do estudante, ajudando não apenas como prática acadêmica, mas como prática social em geral. Neste sentido dividimos esse trabalho em dois tópicos: No primeiro dissertaremos sobre a definição da leitura e da escrita, tendo em vista a problemática: qual sua função e seu sentido. No segundo tópico trataremos de mostrar os processos de adquirir e compartilhar conhecimento através da escrita.


1 DEFINIÇÃO DE LEITURA E ESCRITA


De forma geral definimos a escrita como um tipo de linguagem específica (ELIAS; KOCK, 2014, p. 32). A escrita e a leitura são a dominação desse processo de linguagem, dessa mesma escrita. Acreditamos que a leitura é a dominação dessa linguagem, havendo, todavia, uma interação entre ambas. Assim, para fazer exercício dessa prática é preciso dominá-la, isso não significa estritamente ter uma dominação perfeita da escrita, pois esta vem com a prática ao longo do tempo. Precisa-se apenas ter em conta diferenciar que a escrita é diferente da fala, onde a escrita se dá de forma a uma linguagem pública e a fala, geralmente, a uma linguagem privada.

A primeira definição, pelo menos, é esta: a leitura e a escrita são a dominação de uma linguagem: um código significativo de signos de ordem pública como prática social. No cerne dessa definição pode surgir algumas interpretação sobre a questão de como essa mesma definição foi sendo estabelecida, essas são: 

1) Como foco na língua, onde regras e códigos são predeterminados e estabelecidas por normas convencionais, isso diz respeito a uma escrita apenas baseada na gramática e na norma culta da língua; 

2) Como foco no escritor que escreve de acordo apenas com seu pensamento, sem levar em consideração ao leitor; 

3) Como foco numa escrita interracional, onde aquele que escreve pensa em seus leitores, desta forma o sujeito escreve, reescreve, rever e reler. 

Este exercício, visto no terceiro foco e de maior relevância, é um processo de oficina, no qual o escritor está preocupado na comunicação entre seu leitor e ele mesmo, escritor, em se fazer entendido. Desta forma, não se pode haver uma dissociação entre as normas da língua, o foco apenas do nosso pensamento sem consideração ao leitor, mas unir o sentido do texto na comunicação e aquilo que se quer passa como informação ao leitor.

Esse último aspecto é importante, pois traz uma interação, não apenas assimilação de regras ou código, nem somente a intenção do autor e seu pensamento, mas o sentido do texto na construção comunicativa entre escritor e leitor (ELIAS; KOCK, 2014, p. 33 a 35).

Para concluir, é importante notar que o aspecto do conhecimento não deve apenas partir daquele que escreve, mas é um processo de interação entre conhecimentos. A escrita deve ser sempre voltada para o outro (leitor), pois é um diálogo marcado entre pessoas.


2 A ESCRITA COMO PROCESSO DE CONHECIMENTO


Antes de mais nada devemos antecipar que estamos acostumados a crer que o conhecimento deve ser algo bem definido e muito fácil de assimilar, mas esta concepção tende a ser muito falaciosa. Pensamos, todavia, que o conhecimento exige muito esforço, dedicação e estudo. Não é algo pronto e acabado, embora o ser humano já detenha a priori, condições do conhecimento (cogitatio), este não ocorre simplesmente como inato, mas deve-se ser trabalhado na escola e na sociedade. É importante, lembramos, não confundir conhecimento com pensamento: pensamento é algo natural do ser humano e conhecimento é uma construção do ser pensante e de sua experiência no mundo.

No tocante, a escrita e a leitura são uma forma de linguagem que permitem exercitar nosso conhecimento. Assim como o esportista que vai a academia, o estudante deve ir à biblioteca, ler, escrever e reler. A escrita é uma grande ferramenta no nosso processo de adquirir o conhecimento. 

       A escrita como leitura tem por processo o adquirir conhecimentos, e a escrita é o exercitar desse conhecimento, seu compartilhamento, e ativação desse conhecimento. Neste sentido, não basta apenas ler o que foi escrito (ELIAS; KOCK, 2014, p. 37), mas escrever sobre o que foi lido.

A escrita tem um papel importante, pois ativa esses conhecimentos quando adquiridos na leitura, como processo daquilo que aprendemos. Noutro sim, não basta apenas ler, mas é preciso compartilhar aquilo que se leu de forma escrita, para absorver e comunica a si e aos outros conhecimentos. Neste sentido é importante a dominação e a disseminação de determinados conhecimentos específicos da escrita que vamos adquirindo no processo do estudo, são estes: 1) linguísticos; 2) enciclopédicos; 3) textuais; 4) conhecimentos interacionais.

  1. No conhecimento linguístico é preciso dominar e conhecer a conversão da escrita, estes elementos são: a) ortográficos, b) gramaticais e) sintáticos, pois isso faz desenvolver uma melhor forma de comunicação com o leitor. A escrita vai melhorar o sentido do texto, todavia, não pode o texto se reduzir somente a esse conhecimento.

  2. O conhecimento enciclopédico, o qual é extremamente importante, vai ampliar nosso conhecimento com outras leituras: Livros, dicionários e conhecimento de mundo: jornais, revista etc. Às vezes reduzimos a leitura apenas a formas escritas, mas essa leitura deve-se ser de forma várias a nosso conhecimento de mundo (ELIAS; KOCK, 2014, p. 42). Na sala de aula, esse conhecimento é de base fundamental no processo educativo-interacional do estudante e do professor para o desenvolvimento da escrita e da leitura. 

  3. No conhecimento textual deve-se saber distinguir entre os elementos textuais que compõem este e qual seu gênero, mas este conhecer não precisa ser de forma a aprofundar-se, apenas conhecer de forma a saber sua distinção e situá-lo dentro dos elementos convencionais e sociais comunicativos, não apenas textual, mas intertextuais. Às vezes na sala o professor confunde muito entre: distinguir qual gênero pertence determinado texto e sua produção. Observamos que não é obrigatório que o estudante domine todos os gêneros textuais, mas que aprimore sua escrita e a pratique na área que deseja seguir como acadêmico.

  4. Conhecimento Interacional: Ao escrever o aluno deve manter e saber o nível de conhecimento e como fornecer pistas de boa compreensão do texto que está desenvolvendo (ELIAS; KOCK, 2014, p. 45).  É esse tipo de conhecimento que vai determinar o gênero textual, dando melhor comunicação entre escritor e leitor. Antes de mais nada, pelo gênero textual, o leitor já tem conhecimento qual linguagem será usada neste texto. Não apenas o leitor saberá de antemão a linguagem usada, mas o próprio escritor já tem a base de quais conhecimentos enciclopédicos e o nível gramatical podem ser utilizados no texto.

Para concluir, vimos que esses quatro elementos são de extrema importância na construção do texto que não podem ser pensados de forma individuais e a esmo, mas têm uma estrutura, e tais elementos devem ser sempre voltados para interação entre escritor e leitor.


CONCLUSÃO


Escrevemos porque essa prática é uma forma de interação, e qual é essa base? a) sempre escrevemos para alguém, mesmo que seja apenas para nós mesmos; b) devemos sempre revisar o que escrevemos, tendo em vista nosso leitor. Entendida, assim a escrita é um ofício e não algo simplório. Deste modo, tem que ser trabalhada aos poucos e com paciência no processo educativo (ELIAS; KOCK, 2014, p. 50). 

A escrita deve sempre pressupor o leitor, é uma interação entre sujeitos, intersubjetividade e conhecimento sociocognitivo de dizer e redizer. Leitura e escrita não andam desassociadas, mas caminham juntas, quando pensadas desta maneira de interação. Esta por sua vez, é a prática social da escrita e da leitura, mas como lembramos requer um esforço por parte tanto do professor como do estudante.

É importante notar, como falamos na introdução, que o ensino de leitura e escrita, devem ser introduzidos com muito respeito e adequação aos conhecimentos prévios dos estudantes sobre a produção textual que estes já dispõem. Tendo em vista também a tradição da escrita que em seu passado, carrega o preconceito da exclusão daqueles que eram considerados iletrados, reduzindo a prática da leitura e escrita a uma classe dominante que se considerava intelectual, fato esse que ainda hoje acompanha a escrita como um ranço, o qual devemos urgentemente superar, principalmente em nossa cultura brasileira.


REFERÊNCIA


ELIAS, Vanda Maria; KOCK, Ingedore Villaça. Ler e escrever: Estratégias de Produção Textual. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014.


PAULO MONTEIRO DOS SANTOS

Especialista em Filosofia Contemporânea - UEFS.


quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

ARTIGO: O QUE POSSO CONHECER? UMA TEORIA DO CONHECIMENTO EM SARTRE E EM RUSSELL

 

PAULO MONTEIRO DOS SANTOS[1]

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

Neste trabalho vamos fazer uma relação entre uma teoria do conhecimento em Sartre e em Russell. Lembrando que estes dois autores são de escolas filosóficas distintas: Russell pertence a escola Analítica e Sartre a escola da Fenomenologia Existencialista, aliás Sartre é o único filósofo que se declarou existencialista. As obras que iremos abordar neste dois filósofos são Os Problemas da Filosofia (Russell) e O ser e o nada (Sartre).

Qual é o problema que levantamos nestes dois autores? O problema consiste em saber como se dá o processo do conhecimento. Lembrando que não é uma preocupação neste trabalho saber o que é o conhecimento, mas sim o que conhecemos, neste sentido se faz necessário trazer as questões sobre a realidade, as coisas, e a crença.

Nosso ensaio não tem necessariamente uma linha divisória em tópicos sobre o que é a teoria de Russell, ou sobre a teoria de Sartre. Escolhemos para isso apenas um texto corrido que hora expõe as ideias de Russell, hora expõe as ideias de Sartre. O importante neste trabalho não é montar um esquema de pensamento, no entanto, temos por objetivo analisar se aquilo que conhecemos tem um ponto em comum nas obras dos dois filósofos. Observamos ainda que não vamos entrar na questão sobre conceitos como valor, amor, Deus, formas matemáticas, etc. Mas sim, trabalhar sobre as coisas que se nos apresentam de imediato como a matéria de forma geral, e a crença neste revelar-se da matéria.

 

                                                                                         
1 RUSSELL E OS DADOS DOS SENTIDOS

 

Sendo assim, uma das primeiras coisas que Russell tenta expor, embora de forma cuidadosa e apenas como forma de orientação, é a existência da matéria, a qual de algum modo nos chega pelos “dados dos sentidos”: Estes se revelam ao nosso conhecimento como um tipo de crença instintivas (RUSSELL, p.25). Sartre denomina esses “dados dos sentidos” como fenômeno (fenômeno de ser e ser do fenômeno) de forma geral, e a crença instintiva como um conhecimento intencional. Entendendo esse conhecimento intencional como se a coisa já trouxesse consigo uma natureza própria, essencial, mas Sartre argumenta que essa ideia é falaciosa.

Russell justifica que esse argumento de crença não é sólido (RUSSELL, p. 25), pois essas são crenças e não quer dizer que essas crenças, instintivas do conhecimento, não possam ser mudadas, ou substituídas, sendo que o que vejo é uma relação das coisas, e não a coisa ela mesma, se é que existe a coisa como sendo desta forma. Todavia, é salutar, aponta Russell, que a aparência nos mostra que há alguma coisa que se mostra na aparência, noutras palavras, posso duvidar que exista esta mesa, mas não posso duvidar que meus sentidos percebem algo ali. Ora pois, “qual é a natureza desta mesa real, que persiste independentemente da percepção que tenho dela?” (RUSSELL, p.29). O que Russell traz com isso é a questão da natureza da matéria.

A matéria para ciência deve ocupar um espaço e ter um movimento, mas esse espaço da matéria, para ciência, é um espaço real e público da investigação. Todavia, o espaço privado dos sentidos não é o mesmo, embora relevante. O espaço real é o público, este consiste em um consenso científico, porém o espaço privado é o da aparência, mas Russell admite uma conexão entre esses dois espaços (RUSSELL p.32). Muito apegado à ciência, Russell afirma que é preciso supor um espaço físico, pois para que nossos sentidos possam ter contacto com a coisa, é preciso haver um espaço (RUSSELL p.34).

Russell aplica ao tempo a mesma questão do espaço, tendo em vista que o tempo é muito relativo no privado: quando sofremos ele dá uma espécie de ilusão como se passasse mais devagar, e quando estamos ocupados ele passa mais rápido. No tocante existe um tempo público e um tempo privado. Ao pôr a questão do tempo, é salutar que eventos no objeto podem ocorrer a um determinado tempo e chegar a nossos sentidos por outro tempo: A luz do sol demora oito minutos para chegar na terra, mas isso não significa que o sol ainda está lá. O sol que vemos, são dados dos sentidos no tempo privado. O tempo público é simultâneo.

Observamos, com base em Russell, que tanto o tempo físico como o espaço físico (público da ciência) são desconhecidos ao nosso conhecimento direto dos dados dos sentidos, pois ninguém é capaz de sentir a presença física das coisas como elas realmente são, apenas a ciência por meios tecnológicos, (e mesmo assim considerando uma margem de erros). Um exemplo no caso do espaço é o movimento ondulatório que só pode existir em um espaço físico e não nos nossos dados dos sentidos. “A questão que permanece é se existe algum outro método de descobrir a natureza intrínseca dos objetos físicos” (RUSSELL p.37).

Uma possível resposta a essa questão, segundo Russell, seria a similaridade entre os dados dos sentidos e o objeto físico, isso já nos dá uma ponte, embora limitada. Essa ideia pode ser refutada quando se parte das análises das cores: as cores dos objetos estão relacionadas ao reflexo da luz solar e do olho humano, e não uma propriedade do objeto em si mesmo. (RUSSELL p.37). Mas esta é uma redução das propriedades dos dados dos sentidos não das coisas, no entanto, na nossa mente, ou seja, uma revelação mental real, só que na mente. Tal ideia foi chamada de idealismo.

 

2 SARTRE E O FENÔMENO

 

Em Sartre o objeto que se apresenta, não comporta uma natureza em si mesmo como se houvesse uma aparência e uma forma verdadeira (SARTRE, 2020, p. 15), pelo contrário: como a coisa (ser-em-si) se apresenta aos dados dos sentidos, se apresenta naquilo que ela é de fato (SARTRE, 2020, p. 18). Esse
seria o fenômeno de ser da coisa, pois não se pode sequer captar a coisa sem esse fenômeno, pois o fenômeno de ser já é parte da natureza da coisa (SARTRE, 2020, p. 19). Não pode haver cebola sem as camadas da cebola.

Os dados dos sentidos, para Sartre, seria o ser do fenômeno, e a estes se tem uma construção mental, já que se atribui a realidade humana essa capacidade da transcendência (SARTRE, 2020, p. 232). Assim, tanto tempo e espaço, são seres aplicados as coisas pela capacidade da consciência em transcender os objetos rumo a uma série total. Porém, não apenas tempo e espaço, como também quantidade, qualidade, modo, relação, amor, valor, falta, possibilidade, etc. (SARTRE, 2020, 249). Para Sartre, conheço a coisa diretamente por um tipo de cogito, no tocante, a consciência não se comporta de forma igualitária no ato de conhecer: Existindo o cogito pré-reflexivo e o cogito reflexivo, este seria o cogito cartesiano (SARTRE, 2020, p. 20). Ora, podemos definir, embora Sartre não o faça, que conhecemos a coisa diretamente (fenômeno de ser) pelo cogito pré-reflexivo, mas a crença na verdade da coisa se dá no cogito reflexivo (ser do fenômeno).

Embora Sartre, de fato, faça um apelo a uma teoria idealista, esta consiste em um idealismo transcendental a qual Sartre coloca aí um realismo também transcendental. Este problema, o filósofo traz de sua tradição cartesiana do cogito a qual Sartre não descarta, mas tenta fundamentar sem, no entanto, recorrer a existência metafísica de algo, mas somente ao dado metafísico da realidade humana, ontológica.

Este conhecimento seja direto, ou de verdades, não depende somente de mim, mas envolvem algumas coisas: 1) A coisa (ser-em-si); 2) Meu corpo (ser-para-si); e o 3) Outro que se revela como a facticidade, pois o mundo só pode ser mundo quando o eu é ser-para-outro. Ora, sobre os objetos, temos apenas opinião, as quais não são as mesmas que as dos outros; o mundo surge como uma ponte entre mim e o outro.

Dizemos mundo, como o conhecimento geral dos objetos, como a mesa-mundo etc. Cada coisa é ela mesmo um mundo à parte. Assim, os dados dos sentidos são os objetos, e não a coisa, pois a coisa é o conjunto e está fechada em si mesmo, sendo apenas captada como fenômeno. Nossa conclusão, em Sartre, é bastante complicada, já que as respostas do meu corpo vem de forma confusa, precisando do outro para garantir uma certeza, ou seja, o outro é a ponte.

 

CONCLUSÃO

 

Para concluir nosso trabalho, voltamos à questão de como se dá o processo do conhecimento tanto em Sartre como em Russell: Notamos que há muita similaridade entre os autores, mesmo de correntes filosóficas distintas; Sartre apela que a garantia do processo do conhecimento se dá pelo outro; e Russell aponta uma similaridade na questão do conhecer pela ciência, a qual determina a verdade do fato. Em geral, tanto em um como no outro, se necessita de uma conhecer rigoroso, mas que tal conhecer abarca uma conversão que é encontrada em um terceiro elemento, por vias rigorosas no outro, ou na ciência dos fatos.

 

REFERÊNCIAS

 

RUSSELL, Bertrand. Os problemas da Filosofia. Tradução Jaimir Conte. Reimpressão, 1972.

 

SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 24. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.

IMAGEM DE SARTRE. Disponível em: http://obviousmag.org/cinema_pensante/2015/10/sartre-um-pessimista-sera-mesmo.html

IMAGEM DE RUSSELL. Disponível em: https://www3.unicentro.br/petfisica/2020/07/31/bertrand-russel-1872-1970/

                  

      



[1] Especializando do curso de Filosofia Contemporânea – UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana. E-mail: paulus.monterum@gmail.com

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

ARTIGO: A ONTOLOGIA EXISTENCIALISTA SERTANEJA NA OBRA OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA

PAULO MONTEIRO DOS SANTOS[1]


INTRODUÇÃO

 

Este trabalho toma por tema a ontologia como estudo no livro Os Sertões de Euclides da Cunha. Para isso se baseia na teoria de três grandes filósofos: Hegel, Heidegger e Sartre. Para melhor nos orientar, abordaremos nosso argumento em dois tópicos: primeiro é o significado do termo sertão e sua implicação linguística neste trabalho; segundo, o nascimento conflitante do sertanejo. Logo abaixo, traremos nesta introdução hipóteses gerais sobre esses dois tópicos, os quais serão expostos mais amplamente nos capítulos.

O termo sertão tem um significado muito peculiar. Embora não seja especificamente definitivo, sertão é aquela terra inóspita, desconhecida, perigosa, onde seria melhor evitar a passagem (HOLANDA, 2001, p. 633). No entanto, para os antigos bandeirantes, era no sertão onde se encontrava as preciosidades como ouro, prata e pedras preciosas. A formação morfológica da palavra que nos chega desde os tempos coloniais é esta, sertão. Palavra que foi popularizada por Euclides da Cunha e que é o título basilar de sua obra-prima Os Sertões. Para nós, o título dado pelo autor não foi por acaso como um recurso literário, mas há um significado mais profundo e originalmente filosófico, e aqui vamos expor nossa interpretação: sertão é o ser em sua forma mais obscura e ao mesmo tempo encantadora que abrange tanto os indivíduos quanto a terra, assim dividimos a palavra em “ser-tão”. Nos parece que Euclides da Cunha captou no termo, embora não exponha em sua obra, uma direção ontológica da formação de uma espécie de sujeito atravessado pelo ser, o ser-tanejo. Sobre este termo trataremos em uma ontologia existencialista sertaneja.

Dessa formação nasce também o ponto conflitante dos três povos que ocuparam a nova terra (Brasil), conflito que tem como palco o seio do ser-tão, Canudos. Desta luta o ser-tanejo vai assumir aquilo que o indivíduo é em seu ser, o que Heidegger chamou de ôntico-ontológico. Mas esta percepção não se deu a todos os envolvidos na luta, mas apenas ao ser-tanejo. O que queremos dizer é que Euclides da Cunha, já muito antes, antecipa uma ontologia existencial com sua obra. Assim, no livro temos uma lógica dialética a qual o autor se inspira, e iste é um fato, em Hegel (CUNHA, 2002, p.62). Notamos que a obra se inspira na divisão hegeliana: Terra (tese); Homem (antítese) e Luta (síntese). Porém, em nenhum momento essa nossa teoria é dita pelo autor, o qual dedica a Hegel um tópico e sem entrar em detalhes sobre sua filosofia dialética. A questão vai se revelando tão profunda que é possível notar as teorias de Heidegger e Sartre, sobre o ser, o qual já denominamos pela língua portuguesa de ser-tanejo (HOLANDA, 2001, p.632).

Os tópicos que irão se seguir pretendem explorar na obra Os Sertões uma ontologia nascente do ser-tão e do ser-tanejo, a luz de uma dialética do ser. No primeiro capítulo vamos conceituar a palavra ser-tão como o ser de maneira geral, e no segundo capítulo o ser-tanejo como aquele que captou o sentido do ser. De antemão, já afirmamos os autores bases em nossa análise que são eles, Hegel, Heidegger e Sartre. Tais filósofos serão de notável ajuda na compreensão desses dois seres: ser-tão e ser-tanejo.

 

1 SER-TÃO: UM SENTIDO DO SER

 

Sertão não é algo, já que não tem uma materialidade em si mesma, mas é um conjunto de algo. É um local sem determinação exata, sendo assim uma totalidade, um universal. O homem do Sertão, sertanejo, é ele mesmo o sertão, pois vive nele junto com os outros e as outras coisas que compõem esse local que por sua vez é inóspito, perigoso, belo e encantador. No Nordeste do Brasil, o sertão é a caatinga, o qual tem por princípio um deserto total nos tempos de estiagem, mas um oásis nos tempos chuvosos. Situação que sempre trás ao nordestino um ponto de partida que é a angústia do homem na natureza. Assim visto, o sertão no contexto da caatinga, assume uma simbioses com o sujeito que fica, desta forma, à mercê da terra, amparado por ela, exigindo desta uma condição.

Para Euclides (2002, p. 19 e 73), Terra e Homem estão casados em um contexto, embora haja uma luta entre estes. Desta forma, pensamos que Euclides notou o exemplo que salientamos antes, em um ponto altamente filosófico que foi a dialética entre a Terra, o Homem, e a Luta. Essa dialética é a mesma de Hegel (CUNHA, 2002, p.62), mas há muita diferença entre os autores. Euclides se dedica em sua obra Os Sertões com a questão da natureza, nisto, acreditamos que para o escritor, não existe, como em Hegel, uma razão absoluta regendo as coisas (NÓBREGA, 2011, p. 59). Em Euclides, é a própria natureza o conceito central, tanto assim o é que a primeira tese é a da Terra. Esta, engloba o todo: homem e a luta. Sendo o ser por excelência a terra, que vai delimitar o contexto, ou seja, não é a terra quem se adequa ao homem, mas o contrário. A maior luta do homem não é entre os homens, mas entre o homem e a terra (CUNHA, 2002, p.71). Euclides reconhece, assim como em Hegel , o homem, (antítese), como sendo essa liberdade, pois reage sobre a terra, buscando se adaptar, essa figura é a do beato Antônio Conselheiro “[...] que o próprio excesso de subjetivismo predispusera à revolta contra a ordem natural, como que observou a fórmula do próprio delírio” (CUNHA, 2002, p.145). Embora as palavras tomem Antônio Conselheiro pejorativamente como um deficiente mental, é clara no que diz: “a revolta contra a ordem natural”, essa observação só comprova nossa tese de que é Antônio Conselheiro o homem movido pela sua guerra contra o sofrimento da terra. Para Euclides, e assim acreditamos, a força do exército republicano, movido pela força determinista de seu tempo, é oposta ao espírito libertador de Antônio. O exército (raça civilizatória) é a manifestação da própria terra como “ordem natural”, já que esta é a raça forte por natureza, enquanto o homem do norte, ser a raça fraca. (CUNHA, 2002, p.112 e 113). No entanto, a obra de Euclides, mesmo não querendo fugir a sua teoria determinista, assume um ponto crítico, e esse ponto é o que fundamenta nossa tese de uma ontologia existencialista sertaneja.

 

“Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia cinco, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados” (CUNHA, 2002, p.532).

 

As palavras acima citadas, são fortes e assim assumem o ponto existencial, por seu tom angustiante. Não apenas Antônio Conselheiro alcançou essa liberdade existencial, mas também seus seguidores, pois não renunciaram a sua liberdade a não se render. Ora, Canudos percebeu que aquilo era o sertão. Por mais que não se possa mudar a terra, “ordem natural”, se pode tentar. O sertanejo percebe assim o sentido do ser, como diz Heidegger, o ôntico-ontológico, pois este se questionou e não permaneceu como os republicanos na área que Heidegger chama de pré-ontológica. Ambos são Dasein, uma possibilidade de… (HEIDEGGER, 2005, p. 42 e 43), mas somente o sertanejo está no questionamento do ser. Com esta análise podemos até criar nossa denominação a esse Dasein como “Ser-tanejo”. A própria estrutura morfológica aponta nossa tese. Este ser-tanejo, vem de outro ser, ser-tão. Embora a terra me obrigue a lutar contra ela, não pretendo mudá-la, mas me adaptar. O ser-tanejo  é um ser vasto como a terra. Assim, ao mesmo tempo que a terra é inóspita, o ser-tanejo se aproveita desta situação para sua proteção contra os inimigos, usando a terra a seu favor. O ser-tanejo é um ser, que ao mesmo tempo separado (transcendência), se faz um ente, junto a natureza, ser-tão.

Na obra de Euclides, o que fica evidente é o ser-tanejo como a realidade humana que percebe o ser, ou seja, a abertura do ser que se questionou sobre sua existência. Euclides da Cunha, por coincidência, não classifica os outros sujeitos, contra os conselheiristas, como ser-tanejos, ao contrário, chama de republicanos, e se sabe que os republicanos eram em sua maioria positivistas. O ser-tanejo se quer é chamado de monarquistas, pois por sua falta de instrução, sequer sabe ao certo o significado de um regime monárquico. Mas sabe, este ser, que ele é um ser, uma liberdade, como diz Sartre (SARTRE, 1997, p. 102). Assim percebe sua existência factual no mundo. Pode não ser um sujeito instruído nas ciências positivistas, mas é o ontico-ontológico, ou este ser-para-si invadido pela náusea. No corrente, foi convidado por sua transcendência a tomar partido. Esse partido se revela ao ser-tanejo como uma transcendência religiosa, mas esta é uma transcendência na imanência: o paraíso dito na Bíblia não é no transcendente, mas logo ali em Canudos, lugar bem real. Logicamente que essa abertura ao ser não agradou às instituições vigentes, nem mesmo a igreja que era o poder divino encarnado, e que o ser-tanejo desafiou. Sapere Aude ( KANT, 1985, p. 100 ), bradou o ser-tanejo.

Todas estas questões do conflito dos ser-tanejo com a terra e do conflito contra os republicanos, acreditamos revelar-se um ponto importante na obra de Euclides: A terra passa a ter uma espécie de consciência, não aquela ideia de res cogitans cartesiana como consciência racional, mas uma consciência dialética entre ser-tanejo e ser-tão (natureza) e sua síntese que seria a luta. Esse ponto de vista assume uma forma de união entre a filosofia de Hegel a outra mais antiga, que acreditamos ser inspirada na filosofia indigina, onde o homem está submetido à natureza. Tanto assim o é que a luta não é ditada por homens, mas por uma espécie de condição das raças. Estes termos só fortalecem nossa tese: raça inferior contra raça superior. Tais termos se aplicam na questão de uma seleção natural, dito de outra maneira, é a natureza quem define as regras.

As ideias de Euclides da Cunha, que era um homem de ciências geológicas, no livro os Sertões, são altamente deterministas. No avançar da obra, vamos notando por menores, por exemplo: o ser-tão não se abrange a todo o território brasileiro, apenas ao interior, muito menos o ser-tanejo poderia ser dito como todo brasileiro. O ser-tões são locais longe das áreas que Euclides chama de civilizadas; são as terras ignotas (CUNHA, 2002, p. 27), áreas marcadas por longos períodos de desertificação, exigindo muito mais do indivíduo, formando na estrutura deste um verdadeiro martírio, ou seja, o martírio secular da terra (CUNHA, 2002, p. 70 e 71). Assim, nasce esse "homem", que não é qualquer indivíduo, mas o ser-tanejo. Lembrando, que não é Euclides que cria o termo, mas apenas evidencia esse fato. Para finalizar, com base no que esboçamos acima, podemos dizer que não é o ser-tanejo que se faz ser-tanejo, mas o ser-tão, que lhe abre o ser, e essa abertura se dá pelo martírio, que funciona como uma angústia existencialista.

 

2 O NASCIMENTO DO SER-TANEJO

 

O que dissemos antes foi uma forma morfológica da palavra sertão, a qual sugerimos com relação ontológica ao termo ser, fim este que coincidiu com a própria divisão da palavra, ser-tão e ser-tanejo. Mas esta divisão não foi apenas a sua forma morfológica no afixo "ser", o próprio prefixo se revelou uma teoria existencial do indivíduo que reside naquela ( e aqui tomamos como termo de totalidade na própria unidade) terra chamada ser-tão, como totalidade; e ser-tanejo, como unidade. O ser-tão é a facticidade e o ser-tanejo é aquele que percebeu o sentido do ser dentro desta facticidade.

Está evidente que nossa teoria se finca nas ideias filosóficas de Heidegger e Sartre. De Heidegger, pois este dasein (ser-tanejo), percebeu essa existência pelo martírio da terra, a qual é a angústia do ser. Seguindo Heidegger, a percepção não se deu de um cogito do tipo cartesiano, consciência racional científica, mas sim de uma origem na transcendência que é este ser. Em Sartre, essa angústia o força tomar partido e lutar para salvaguardar sua liberdade, porque esse ser-tanejo (ser-para-si) é ele também liberdade. Neste capítulo vamos seguir a análise destes dois autores, Heidegger, Sartre, mas também seguindo as idéias dialéticas de Hegel, pois são elas que acreditamos nortear a obra em questão de Euclides da Cunha. Euclides, e essa é nossa opinião, colocou em sua obra uma mescla de ontologia, que ele buscou em Hegel, só que notou o existencialismo partindo dos indivíduos de Canudos, mesmo que nem sequer fez uma citação a Sartre ou Heidegger. E nem poderia Euclides citá-los em seu livro, pois Os Sertões foi lançado em 1905.

Aqui começamos pela questão dialética de Hegel. Como salientamos antes, a obra de Euclides segue a ordem da filosofia hegeliana: A terra é o ser de maneira geral, mas essa terra que afirma o autor é a natureza, então o indivíduo (ser-tanejo), não se encontra fora dela, muito menos tem um mundo aparte dela, ao contrário, está mesclado nela. Por isso, Euclides fala de raça superior, as quais são oriundas da terra. A natureza é o ser por excelência e os outros seres são submetidos a ela que seleciona e aparta. Essa natureza pode ser dadivosa, porém no sertão não o fez assim, que segundo Euclides, não fixou o homem. Este sujeito não é qualquer indivíduo, mas o ser-tanejo (CUNHA, 2002, p. 62). Por mais que a terra acolha o ser-tanejo, suas nuances de estiagem criam um jogo dialético, um “jogo de antiteses”, afirma o próprio Euclides (2002, p. 63). Mas nesta dialética, o ser-tanejo não sente uma repulsa por parte da natureza, mas como sendo ele mesmo acolhido pelo ser-tão, pois é ele mesmo esse ser-tão, forte e difícil de ser definido. “ O sertanejo é, antes de tudo, um forte” (CUNHA, 2002, p. 115)

  Euclides (2002, p. 28) salienta que as pessoas daquela região (ser-tão), nascidas neste contexto, não permanecem, mas saem para outras cidades: “Nenhuma se fixou lá” (CUNHA, 2002, p. 28). O ser-tanejo, ao contrário, não migrou, no entanto, parte para dentro do seio do ser-tão, se adaptando. Vejamos algumas questões radicais nesta percepção: 1) Estes ser-tanejos são os conselheiristas que acreditam no projeto do Conselheiro, ou seja, não são qualquer indivíduo; 2) Este ser-tanejo não está atrás de ouro nem prata, ou riquezas da terra, mas seu projeto é totalmente político, assim não são bandeirantes, ou os sertanistas, que apenas desbravaram, no entanto não se fixaram; 3) O ser-tanejo foi afetado por uma angústia, mas que não lhe leva a recusar o ser-tão, mas ser com ele, e Euclides interpretou essa angustia como loucura no ascetismo do Conselheiro (CUNHA, 2002, p. 158), nós entendemos como uma abertura existencial.

Assim, interpretamos que a linha do ser atravessou aqueles sujeitos, especificamente ser-tanejos, algo como uma certa sabedoria, a qual Sartre, chamou de cogito pré-reflexivo (SARTRE, 2020, p. 24), já que, pensou o ser-tanejo: é possível viver neste lugar seco e deserto, pois a vida é essa luta dialética que pode ser transformada  a nosso favor. Tanto foi desta maneira que Canudos cresceu mais que as outras cidades, tornando-se uma ameaça econômica (CUNHA, 2002, p. 172), assustando todas as instituições. Até mesmo a instituição que influenciava ideológicamente suas concepções religiosas que era a igreja Católica, e este rompimento não foi algo simples, pois representou uma abandono crítico a um poder tão importante culturalmente na vida daqueles sujeitos. Os ser-tanejos não reconheciam a doutrina da igreja Católica, isso o prova Euclides (2002, p.196): “V. Rvma. é que tem uma falsa doutrina e não o nosso conselheiro.” Essa passagem se deu quando missionários católicos foram a Canudos e houve discussões acerca de como Conselheiro conduzia religiosamente seu povo. A Igreja queria que os ser-tanejos reconhecessem a república e voltassem a aceitar as cobranças feita pelo governo, fatos que foram recusados pelos conselheiristas (ser-tanejos) até às últimas consequências.

O ser-tanejo encontrou um novo sentido para o ser-tão, até então não percebido, que foi o de não fugir. Como afirma Sartre, esse para-si, ser-tanejo, percebeu sua existência, uma abertura no seio da consciência: não somos uma coisa em-si mesma, fechada e que se dissolve em uma identidade, mas uma consciência que só pode ser sendo consciência de alguma coisa e não a coisa em si, ou seja, não precisamos que alguém nos trate como marionetes,  simples objetos. Sobre este pensamento o ser-tanejo se engaja na luta e toma partido. Mas o que faz com que o ser-tanejo perceba essa abertura, não é a metafísica do nada, sartreano, mas a metafísica da religião na figura do asceta Antônio Conselheiro. E sua ascese o levou ao martírio, o deserto de si. Assim, como a náusea em Sartre, o martírio não tem por sentido o sofrimento para o ser-tanejo, pois se assim fosse não teria sentido lutar, de outra forma seria aceitar os desígnios de Deus. Ao contrário, o ser-tanejo desafiou, como vimos antes, todos os poderes. Ora, esse martírio não pode ser para o mal do ser-tanejo, e tal ideia está clara no Sertões, embora pareça absurda. Tanto assim é que Antônio Conselheiro é visto com espanto: louco, profeta, político. As autoridades não sabiam defini-lo, chamando-o de subversivo e pregando doutrinas contra o Estado e a religião (CUNHA, 2002, p. 166). A pergunta que podemos formular é: se o martírio deve nos condicionar a aceitar a realidade, porque o ser-tanejo, mesmo passando por esse martírio ascético no deserto (ser-tão) não aceitou?

O martírio para o ser-tanejo, assumiu, pensamos, o que diz Heidegger como uma abertura ao ser, um sentido do ser, desta abertura uma percepção da liberdade. O ser-tanjo não se percebeu como esta cadeira, esta mesa, mas como Dasein, no portugues ser-aí, mas nossa nomenclatura ousamos dizer ser-tanejo. desta forma o ser-tanejo não é apenas um ôntico, mas um ôntico-ontológico a sua maneira, pois a maioria dos que em Canudos viviam, mal sabiam ler ou escrever, muitos menos eram versados em filosofia ou qualquer ciência. Mas Euclides é explícito em dizer que o ser-tanejo não aceitou sua condição, assim como os republicanos aceitaram, ou mesmo os que moravam ali. O oposto, o ser-tanejo não quer sair do ser-tão, fazendo um papel inverso. Para finalizar, o martírio se revelou como o sentido de que a vida do sujeitou é uma luta dialética entre o “Homem” (ser-tanejo) e a “Terra” (natureza). Mas não é o martírio uma aceitação de condições subserviente e assujeitamento nem a terra nem a ser escravo. Para o ser-tanejo o martírio nos conduz a liberdade pois nos revela nossa existência.


CONCLUSÃO

 

Vimos no primeiro capítulo como o significado da dialética assumida pelo ser-tanejo diante da natureza,  não é um ser fora da natureza, por isso não deve lutar para eliminar sua condição de ser com a terra, mas lutar para se adaptar, pois o ser-tanejo é ele mesmo o ser-tão. Já no segundo capítulo explicamos como é essa dialética e sua formação, a qual é a abertura e o sentido do ser formando assim o ser-tanejo. Essa abertura só foi possível ao ser-tanejo pelo martírio da terra, o qual não o condiciona em se resignar, mas o convida à luta. Luta esta que é a suprassunção de sua existência.

 

REFERÊNCIAS

 

CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Martin Claret, 2002.

 

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Maria de Sá Cavalcante. 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2015.

 

KANT, Immanuel. Textos seletos. Tradução Raimundo Vier; Floriano de Souza Fernandes; Emmanuel Carneiro Leão.  2. ed. Petrópolis, RJ: 1985.

 

NÓBREGA, Francisco Pereira. Compreender Hegel. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

 

SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 24. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.


[1] Especializando do curso de Filosofia Contemporânea - UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana). E-mail: paulus.monterum@gmail.com

ENSAIO: LIBERDADE E SEGURANÇA NA MODERNIDADE LÍQUIDA

            Este tema nasce de uma entrevista de Bauman no programa Café-Filosófico da TV Cultura. No final da entrevista, Bauman formulou a seguinte questão: O Grande problema do indivíduo na pós-modernidade é saber chegar a um equilíbrio entre sua liberdade e sua segurança, já que uma anula a outra no nosso meio humano.

Notadamente, Bauman traz novamente a discursão para o cenário da pós-modernidade a liberdade e o determinismo (determinismo como segurança). Evidente que minha garantia de Segurança elimina a minha liberdade, ou vice-versa.

Para o melhor andamento deste tema, vamos dividir nossos discursões sobre quatro pontos: 1) discutir a Liberdade e o determinismo em Kant; 2) Depois, a Liberdade sartreana e o seu fina na ética; 3) Discutir a Liberdade Líquida de Bauman e sua antinomia com a segurança dos indivíduos, por fim, 4) usar exemplos do cotidiano como analogia da liberdade Líquida.

 

1 LIBERDADE KANTIANA

 

Em sua obra Crítica da Razão Pura, Kant chegou à conclusão que a Liberdade e o Determinismo são antinomias do conhecimento humano, ou seja, por mais que se discuta nunca chegaremos a algum lugar, apenas a aporias, becos sem saídas, porém é preciso que o sujeito utilize-se sempre destas antinomias, pois elas se encontram em seu uso da razão, mas mesmo em Kant é preciso de um poder “coator”, sem o mesmo, o sujeito está a esmo: Ou se necessita da razão para lhe guiar com liberdade ou se necessita de um poder para lhe guiar com segurança.

Não é o homem, que com suas próprias forças quem se liberta sozinho, mas precisa do poder da iluminação, o Espirito Absoluto para lhe guiar, na razão plena. Lógico que falamos aqui do Idealismo alemão. A liberdade kantiana não é algo inerente ao ser humano, ela é uma busca, que dá ao homem o esclarecimento. E este homem é o europeu, pois estamos na era do iluminismo. A ideia aqui é eurocêntrica. (KANT, 1980).

Entre os períodos dos séculos XIX e XX a razão kantiana definhou. O homem não era esse animal racional totalmente, mas também irracional, prova disso foram as duas grandes guerras mundiais. O filósofo francês Jean Paul Sartre vai cria um novo conceito de humanidade, que nem mesmo será de “homem”, legado da modernidade, pois no período do século XX, com as crises que se seguiram, apareceu o Judeu, os povos negros, o cigano e a mulher. 

 

2 LIBERDADE EM SARTRE

 

Sartre inspirado em Scheller  e seu conceito de “pessoa”, vai chamar esse novo agente de Ser-para-si (usando o método fenomenológico para suspender seu material de estudos) e este novo ser é Liberdade.

Não é a Liberdade a libertação de ser, mas quando afetado por sua angustia no mundo, este ser ativa sua principal condição: a Liberdade. Na verdade, este ser está condenado a liberdade, pois mesmo que eu a negue, ou negue sua existência, entro em crise, porque minha liberdade sou eu.

O fato de eu nega-la já demonstra minha escolha e condenação: O homem é liberdade, protela Sartre. Sendo um ser de liberdade, é preciso de uma ética da liberdade porque existe o outro e o ser-para-se é também um ser-para-outro. A ética vai delimitar a minha liberdade, por isso uma ética fundada no outro. (SARTRE, 1997).

Com o advento das duas grandes guerras mundiais, e as guerras da transição entre o século 20 e 21, o ser humano se mostrou não mais um ser seguro no seu futuro, e passou a conviver com o medo. O Estado, não garante mais totalmente a dar uma segurança a todo sujeito humano. A segurança só vai até a fronteira. Mesmo o Estado vai aos poucos deixando de existir e menos ainda a dar segurança. Esta segurança é mais concreta se a pessoa se filia a grupos, comunidades, etc. A segurança é feita por câmeras e nem mesmo a tecnologia supre o medo. E esse medo não é de todo ruim ao mercado, pois gera lucros, põem o sujeito mais ansioso em suas necessidades, e isso faz com que este indivíduo gaste. Surge assim a sociedade de consumo, se é que existe mais uma sociedade, como nos afirma Bauman.

 

3 LIBERDADE E SEGURANÇA LÍQUIDA

 

Bauman pensa o ser humano da pós-modernidade um indivíduo fluído em oposição ao sólido da modernidade. Fomos libertados, mas esta liberdade afetou nossa segurança e nossas escolhas nos levam a opções infinitas de coisas características do mundo do consumismo atual. (BAUMAN, 2021). Para expressarmos de maneira didática essa realidade líquida, vamos dar alguns exemplos:

1)    Exemplo do Namoro Líquido:

Ora, eu tenho uma namorada, ou namorado, e nós nos amávamos: “Eu preciso de você porque quero que construamos um futuro juntos: ter nossa casa, ter nosso carro, dividir as despesas, além de nossa afetividade. ”  Mas um belo dia ela se vira e diz: “Olha eu pensei melhor e acho que deveríamos terminar, pois penso que um relacionamento vai tirar nossa liberdade. Logo agora que estou trabalhando estudando, creio que este compromisso me limitará. ”  Depois me diz novamente: “Olha acho que preciso de um psicólogo, pois cada vez que me relaciono, eu invento uma briga, discussão para terminar.” Ele ou ela, no fundo não sabe, mas essa é uma crise de nossos tempos entre a liberdade e a segurança: “Devo seguir um relacionamento e ter segurança juntos? Ou assumir os riscos de minha liberdade e viver só?

2)    Exemplo dos grupos ou comunidades:

Eu dava aulas havia 06 anos, em 2015, e já tem 05 anos que não dou mais. Quando dava aulas, eu gostava de aplicar trabalhos em grupos e a nota geralmente era dada ao grupo como um todo. No fundo esse método me dava uma vantagem que era, não ter que avaliar cada aluno individualmente.

Para os alunos, pensava eu, que lhes ajudava na socialização do estudante na sala e na sociedade. Mas ao longo do tempo eu fui percebendo problemas nesse método, pois os grupos da sala geralmente não aceitavam alguns colegas: por terem déficit de atenção, ou ser violento, ou por serem imperativos, ou ter déficit de aprendizagem, ou desanimados sem querer fazer as atividades. Estes alunos sofriam rejeições. Então eu as vezes força os grupos a aceitarem os colegas e ajudarem, mas no fundo o problema já tinha sido instalado, e o aluno já tinha sido marcado.

Eu mesmo sofri com essas práticas de trabalho em grupo quando estudava em Curitiba: Lá só haviam quatro nordestinos na sala, os restantes eram todos do Sul. Destes quatro, eu era o que mais tinha problemas na aprendizagem, até hoje tenho, e mesmo esse grupo não me aceitava e sempre inventavam desculpas para não fazerem trabalhos comigo. Então tive que falar ao meu professor que a partir daquele momento iria fazer minhas atividades só. O professor não aceitou a princípio, mas depois foi cedendo. Porém ao decorrer do tempo, os seminaristas do Rio Grande do Sul tiveram piedade de mim e me inseriram entre eles. 

Os grupos, neste contexto, nos dão segurança, mas se formos rejeitados não vamos ter liberdade suficiente para estudar, a depender da regra que se impõe em uma instituição de ensino. Será que foi diferente dos judeus na Alemanha; dos ciganos na Europa, dos Imigrantes? Será que estas pessoas se inserem em algum destes grupos? Será que a regra não se aplica aqui também?

3)    Exemplos do Indivíduo em grupo:

Ora, meu pai é alcoólatra, e minha mãe é submissa a ele, na verdade tem medo dele. Eu me criei neste contexto de violência em casa e de pobreza. Meu pai saia para o trabalho e voltava bêbado. Minha mãe trabalhava demais, e na verdade eu sentia que ela tinha ciúmes de mim, me achou feia no nascimento. Me chama de feia. Imaginemos o que é isto para uma criança!

Eu estudo, mas eu tenho certeza que estes estudos, nesta cidade interiorana não vão me levar a nada. A sociedade de minha cidade, eu sinto, tenta esconder livros de mim. O professor não ensina corretamente, e são raros os dias que vem a sala, se quer temos aula normal durante a semana. Ora, eu tenho que dar um jeito em minha vida.

Eu sou uma mulher já crescida, então vou para a cidade grande, lá eu percebo que tenho um corpo bonito, e eu vou tratar o mundo como ele me trata, com sensações. Eu sou livre, dona do meu corpo. Serei uma profissional do sexo, me disseram que se ganha dinheiro, então vou a uma casa e uma senhora me acolhe e me respeita nesta casa. Apesar de alguns infortúnios ganho dinheiro, posso dar futuro a meu filho, coisa que meus pais nunca puderam. Que se passa? Eu abdico de minha liberdade justamente porque não tive nenhuma chance na vida e a um grupo eu sigo.

 

CONCLUSÃO

 

Nossa discussão chega a um impasse sobre a segurança e liberdade nestes tempos de modernidade líquida: Em Kant notemos que essa liberdade era uma meta a ser alcançada, não por qualquer um, mas o “homem” europeu esclarecido; Sartre afirmou que essa liberdade não era uma meta, mas o próprio ser-para-si, e que esse ser não era mais o “homem” europeu, mas toda a condição humana, e que tal liberdade nos revela o “outro”, por isso se necessita de uma ética fundada na liberdade.

Bauman, embora no mesmo propósito de Sartre, assume que para essa liberdade para ser concreta se precisa de segurança, e tal coisa sempre encalha em paradoxos. Vimos com os exemplos que no fundo a discussão de se encontrar um equilíbrio entre segurança e liberdade, é bem mais complexo do que se imagina. Mas a discussão não se encerra pois é preciso sempre se continua a questionar, pois esse é princípio intrínseco do ser humano.

 

 

Referências

 

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

 

Café-Filosófico TV Cultura: Estratégias para a vida: Zygmunt Bauman. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=IyhOBYoBns. Acesso em 03 de Mai. 2021;

 

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. In: ______.  Immanuel Kant. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultura, 1980. v. 1. (Coleção Os pensadores).

 

SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

 

______. O existencialismo é um humanismoIn: Sartre e Heidegger. Tradução de Vergílio Ferreira. São Paulo: Editora Abril, 1973. v. 45. (Coleção).


Paulo Monteiro dos Santos